SUBCHEFIA DE ASSUNTOS PARLAMENTARES

EMI nº 00022 SDH/PR

 

Brasília, 01º de julho de 2010

 

Excelentíssimo Senhor Presidente da República,

 

1.                       Temos a honra de submeter à apreciação de Vossa Excelência o anexo Projeto de Lei que altera o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990) para estabelecer o direito da criança e do adolescente de ser educado e cuidado sem o uso de castigos corporais ou tratamento cruel ou degradante. Trata-se de proposição que proíbe uma das mais graves, banalizadas e invisíveis violações da infância e adolescência no país: o castigo físico, o tratamento cruel ou degradante.

2.                       As crianças e adolescentes têm o direito de serem educados e cuidados sem o uso de qualquer forma de violência e, nesse quadro, confirma-se o dever do Estado na garantia desse direito, desenhando e executando políticas e alinhavando arranjos legais que instalem e desenvolvam sistemas de proteção em todos os níveis de governo. O Comitê dos Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas enfatiza, neste contexto, que a eliminação do castigo violento e humilhante de crianças, por meio da reforma legislativa e outras medidas necessárias, é uma obrigação imediata e integral dos Estados Partes.

3.                       O direito das crianças e adolescentes de viverem livres de violência e discriminação é, portanto, um desafio central e um compromisso ético e, por conseguinte, a elaboração de marcos legais que protegem direitos fundamentais - particularmente aqueles que visam à eliminação da violência contra as crianças e adolescentes - são prementes. Enquanto o aparato normativo vem avançando no sentido de coibir a violência praticada contra adultos, nas mais diversas formas, ainda convivemos com um quadro em que a criança e o adolescente são menosprezados, humilhados, desacreditados, ameaçados, assustados ou ridicularizados. A violência contra crianças e adolescentes tem sido, portanto, admitida, a pretexto de se constituir enquanto recurso pedagógico e educativo.

4.                       Desta forma, no contexto de implementação de ações de promoção dos direitos de crianças e adolescentes visando ao seu desenvolvimento integral, o texto do Programa Nacional dos Direitos Humanos III, tornado público e aprovado por Vossa Excelência, firmou objetivo estratégico na perspectiva da proteção e defesa dos direitos de crianças e adolescentes, particularmente aquelas com maior vulnerabilidade:

Diretriz 8: Promoção dos direitos de crianças e adolescentes para o seu desenvolvimento integral, de forma não discriminatória, assegurando seu direito de opinião e participação.

Objetivo estratégico III: Proteger e defender os direitos de crianças e adolescentes com maior vulnerabilidade

Ação Programática c) Propor marco legal para a abolição das práticas de castigos físicos e corporais contra crianças e adolescentes.

(Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3)/Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República- Brasília:SEDH/PR, 2010, pg. 78).

5.                       O reconhecimento e a incorporação de marcos normativos direcionados à eliminação da violência contra crianças e adolescente representa ponto de preocupação e é, há alguns anos, objeto de pronunciamentos e de orientações de instâncias como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos e a Organização das Nações Unidas, por meio do Comitê dos Direitos da Criança, como aludido anteriormente. Assim, vem se consubstanciando um profundo questionamento à prática do castigo corporal como método de disciplina de crianças e adolescentes e, desta forma, construindo-se uma demanda internacional para que os Estados atuem de forma imediata frente ao problema do uso do castigo corporal mediante sua proibição legal explícita e absoluta. A ameaça ao perpetrador de ações disciplinares exageradas, seja o pai, o responsável ou profissional de instituição e, ainda, sanções administrativas e corretivas pertinentes, devem também agir como intimidações claras a tais práticas de violência.

6.                       Para além do olhar centrado na observância e aperfeiçoamento do aparato jurídico, incluímos como premissa de apresentação da proposição, portanto, a compatibilização do marco legal em vigor ao sistema internacional e nacional de proteção dos Direitos Humanos de crianças e adolescente e, de forma complementar, sinalizamos para a adoção, em primeiro plano, de medidas preventivas, educativas e de outra natureza que possam ser assimiladas para assegurar a eliminação de tais formas de violência. Contudo, a condição peculiar de crianças e adolescentes e a especificidade das relações intra-familiares demandam que a decisão de submeter sanções aos pais, ou de interferir formalmente na família de outras maneiras, seja tomada com muito cuidado, premissa que é preservada no âmbito do Projeto de Lei ora proposto.

7.                       O Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como a Constituição Federal, demarcam, de forma já relevante, respectivamente nos artigos 5º e 227º, que: "nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais" e que "é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão"

8.                       Conquanto, as diretrizes nacionais e internacionais apontam para a necessidade de aprofundamento e explicitação da preocupação com tais formas de violência e, portanto, exigem que o castigo corporal e o tratamento cruel e degradante sejam proibidos de maneira explícita. Ao mesmo tempo, os movimentos sociais vêm propondo a ampliação do debate e a adoção do marco legal, nos mesmos termos.

9.                       A Secretaria de Direitos Humanos, por sua vez, desde 2007, integra a Rede Não Bata, Eduque, pautando o tema da erradicação dos castigos físicos e humilhantes em sua agenda institucional. Assim, vem contribuindo, portanto, para o fortalecimento de ações educativas e de uma campanha com este tema, além do apoio a experiências inovadoras de erradicação dos castigos físicos e humilhantes. Do mesmo modo, em 2009, a Secretaria de Direitos Humanos apoiou a realização do Simpósio Nacional sobre Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes, promovido pela Rede no Rio de Janeiro, e que reuniu especialistas e autoridades nacionais e internacionais engajadas na construção de alternativas institucionais e de marcos legais que favoreçam o enfrentamento desta violação dos direitos de crianças e adolescentes.

10.                     Em algumas das atividades e ações articuladas por meio da Rede Não Bata, Eduque, Vossa Excelência, bem como Primeira Dama da República, Dona Marisa Letícia Lula da Silva, estiveram presentes prestando apoio institucional a uma proposta mais estruturada para o enfrentamento dos castigos físicos e humilhantes no País, que a coloque como tema prioritário na sociedade brasileira.

11.                     Assim, a proposta apresentada se coaduna ao esforço histórico recente que envolve a mobilização de atores políticos e a implementação de políticas públicas, ambos processos assentados nos marcos do Estatuto da Criança e do Adolescente, no paradigma da proteção integral e na assunção de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento.

12.                     O Projeto de Lei objetiva aprofundar o direito que todas as crianças e adolescentes possuem de ser educados e cuidados sem o uso dos castigos físicos e do tratamento cruel e degradante como formas de correção, disciplina e educação ou sob qualquer outro pretexto.

13.                     A proposição caracteriza os castigos corporais, bem como os tratamentos cruéis e degradantes que passam a figurar no rol de violações passíveis de enquadramento segundo as determinações do Estatuto da Criança e do Adolescente. Há que se ressaltar que a instauração de processos contra pais é na maior parte dos casos contrária ao interesse da criança e do adolescente e, portanto, o processo e outras intervenções formais (por exemplo, remover o agente violador) só serão considerados quando necessários para plena proteção da criança e do adolescente de situações extremas ou quando correspondam ao superior interesse dos mesmos.

14.                     Contudo, tendo como premissa que nada pode justificar o uso de formas de disciplina que sejam violentas, cruéis ou degradantes na educação de crianças e adolescentes, o projeto possui uma dimensão pedagógica e educativa que permitirá, de plano, estimular e ampliar o debate em torno de tais formas de violações, desaconselhar sua adoção por quaisquer responsáveis e, extensivamente, fomentar alternativas sadias e emancipatórias de educação e relacionamento com nossas crianças e adolescentes, afirmando em particular o direito à convivência familiar e comunitária. A sanção ou punição, ressalvado o devido processo legal, deve ser vista como medida excepcional e de última natureza.

15.                   Obviamente, também se deve enfatizar mais uma vez o contido na Convenção, bem como no Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária que estabelecem que qualquer separação entre pais e crianças deve ser considerada necessária à realização do interesse maior da criança e submetida ao devido processo legal, com todas as partes interessadas, inclusive a criança e o adolescente representados. Quando o afastamento for necessário, devem ser consideradas alternativas ao afastamento da criança em relação à sua família, inclusive a remoção do agente violador, suspensão da sentença ou medidas assemelhadas.

16.                     A proposição materializa, por fim, o crescente compromisso de sociedades contemporâneas que reconhecem que crianças e adolescentes tem direitos frente ao Estado e cabe a ele organizar ações para sua plena realização. A proposição, inegavelmente, aborda a realização de direitos que são inerentes a crianças e adolescentes e indispensáveis a sua dignidade e pleno desenvolvimento. É importante no contexto de uma ampla aceitação tradicional do castigo físico e, portanto, consideramos que a proibição, em si, não garantirá mudança das atitudes e práticas, mas, a ampla conscientização do direito das crianças à proteção e de leis que reflitam esse direito é necessária. Nesse sentido, é premente estimular que os pais parem de infligir castigos violentos, cruéis ou degradantes, adotando intervenções apoiadoras e educativas, não punitivas.

17.                     Sabemos, no entanto, que uma coisa é proclamar os direitos, outra é, efetivamente, gozá-los. Neste momento, envidamos esforços no sentido de dar materialidade a reivindicações dos movimentos e aperfeiçoar mecanismos legais que já se constituem em conquista histórica e institucional para o desenvolvimento e sustentabilidade de políticas de públicas para a infância e a adolescência, garantindo todos os direitos das crianças e adolescentes e protegendo-os de qualquer forma de sofrimento e limitação a seu pleno desenvolvimento.

18.                     São essas, Senhor Presidente, as razões pelas quais submetemos o anexo Projeto de Lei à elevada apreciação de Vossa Excelência.

 

Respeitosamente,

  

Paulo de Tarso Vannuchi
Ministro de Estado Chefe da Secretaria  de Direitos Humanos

Luiz Paulo Teles Ferreira Barreto
Ministro de Estado da Justiça


Márcia Helena Carvalho Lopes
Ministra de Estado do Desenvolvimento Social e Combate à Fome